segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Caixa de domingo















O quarto silencioso, desarrumado, apático e pesado. As roupas espalhadas pelo chão, a televisão sem som, a luz amarelada do quarto ao lado passando pela fresta, o frio gelado entrando pela janela não totalmente fechada. O peito aperta, dói, sufoca sob o pijama velho e já gasto pela noite e pelo dia gastos sob o edredon amarrotado. E então ele abre o armário e suas mãos vão agilmente atrás daquela caixa meio marrom, meio colorida, meio velha, meio aberta, escondida ao lado das camisas e abaixo dos cabides. Ele sabia porque queria aquela caixa. Leva a caixa para sua cama. Senta. Silêncio. Abre. Silêncio. Respira. Silêncio. E da caixa começam a sair ingressos antigos de cinema, presentes de amores antigos, declarações de amigos, objetos comuns mas com grande cunho psicológico. E então ele vê aquelas duas cartas dobradas, a do papel verde, a do papel azul. Ele não precisa abrí-las para saber de quem eram. Ele sabe cada detalhe daquela carta, que até então ficava em um cofre e por muito tempo ficou em sua carteira. Eram as cartas dele, daquele que ainda mora em seu coração, mas com os anos passou a ficar trancafiado por motivo de segurança (do próprio coração). Ele abre a primeira. Setembro de 2006. Quatros anos atrás. A primeira carta. A letra de forma, a assinatura "seu namorado que te ama muito", as declarações bem humoradas. Lágrimas caem de seus olhos, caem fortes, silenciosas e fortes. E ele abre a segunda carta. Uma carta de 6 meses de namoro. A letra já é cursiva, mas as piadas doces e engraçadas estão lá, e o amor é maior, se sabe que é mais forte. Fala sobre o ronco, fala sobre as mancadas, fala sobre o amor, fala sobre o ronco. E como ele ri quando lê sobre o ronco. Tinha esquecido sobre o ronco, assunto que era tão engraçado quando eles estavam juntos. Mas lá se foram os quatro anos. As lembranças ficam guardadas, secretas, como aquelas cartas. Às vezes elas se abrem, às vezes elas choram, mas no fundo ficam sorrisos. E uma caixa que volta para o armário. E um quarto que continua silencioso, vazio, desarrumado. E as bochechas molhadas. Foi mais um domingo difícil. A segunda-feira chegou. Onde está a caixa da segunda?

domingo, 17 de outubro de 2010

Quando alguém vai embora

Quando nos afastamos de alguém de quem gostamos, mesmo sabendo que essa pessoa está bem, experimentamos um sentimento de perda. Por que isso acontece, mesmo sabendo que não há perda de verdade?

Eugenio Mussak

Cheguei a Uberlândia para proferir uma palestra para pais e professores de um colégio local. Uma simpática professora me esperava no aeroporto e fomos conversando sobre o ambiente escolar, sobre a alegria dos alunos, suas dificuldades, sobre a indisciplina, a comunicação entre gerações diferentes, coisas assim. A palestra seria à noite, mas eu havia pedido para conhecer o colégio, pois tínhamos algum tempo.

No caminho ela me disse algo curioso, como que preparando meu espírito: “Não estranhe, professor, nosso colégio normalmente é muito alegre, mas hoje o ambiente está triste. Provavelmente você vai ver algumas alunas chorando”. Não consegui não estranhar o comentário. Quando perguntei o que tinha acontecido, ela explicou: “É que é o último dia da Candice, uma aluna de intercâmbio do Canadá. Ela está indo embora amanhã”.

E ela tinha razão. Em vários momentos senti a tristeza no ar, como se houvesse um luto. A Candice devia ser muito querida, pois sua despedida estava repercutindo em todo o colégio. Era o mês de agosto e ela tinha que voltar à sua terra, onde as aulas começam em setembro. A menina voltaria para Vancouver, a bela cidade da costa oeste canadense, e o colégio de Uberlândia, no Triângulo Mineiro, seguiria sua rotina, mas não seria mais o mesmo. Candice teria deixado uma marca na vida de colegas que tinham se acostumado com sua presença, sua alegria. A poderosa marca da amizade.

Durante minha palestra não pude não me referir ao fato. E lembrei que um colégio é uma espécie de entreposto de emoções, pois por ali passam anualmente alunos, professores, pais, funcionários, criando um ambiente de convivência, com idiossincrasias, alegrias e tristezas. E de repente vêm os fins de ano, as formaturas, e com isso as alegrias dos novos ciclos e as tristezas das despedidas.

Os garotos e garotas de certa forma estão sendo preparados para o que se repetirá ao longo de suas vidas. Encontros e separações, afinidades e desencontros. Pessoas que invadem nossa alma como posseiros, semeando ilusões que se dissolvem quando ouvimos um “Tchau, estou indo embora!” Como assim? Você me conquistou, tornou-se meu amigo, uma pessoa importante que agora simplesmente vai embora?

Você é responsável por mim – diria o Pequeno Príncipe –, pois você conquistou minha amizade e afeto. Agora assuma sua responsabilidade! Eu bem que gostaria, mas é a vida que não deixa. Ela tem uma lógica própria que não respeita os viventes – responderia o homem grande. A lógica da vida é que temos que seguir nossos rumos, fazer nossa parte dentro do grande agrupamento humano. A vida segue seu curso e nós fi camos chorando nossas perdas nas esquinas, mesmo sabendo que há novas conquistas ao atravessar a rua.

Percebemos, então, que havia um clima estranho entre nós, como se os sentimentos estivessem embaralhados. E estavam. Foi quando um colega, estressadíssimo, entrou no vestiário dos plantonistas proferindo palavras de desabafo, todas impublicáveis. Outro colega, então, fez um comentário lento e profundo: “Sabe, vou sentir muita falta de seu mau humor, meu caro”.

O riso foi geral e o primeiro colega teve que aguentar muita gozação. Mas depois nos detivemos a pensar se seria mesmo possível sentir falta do mau humor de alguém. É claro que não era da cara de azedo que o colega estava portando naquele momento que sentiríamos falta. Era dele. Com todas as qualidades e defeitos que ele e todos nós temos. Seu desabafo naquele momento não era só seu, era de todos nós, pois ele era um de nós. Alguém do grupo, da tribo que tinha passado seis anos junta, estudando, sonhando, brincando, jogando bola, tomando cerveja.

Seis anos que, quando se tem 20 e poucos, parecem muito mais. Entramos calouros ingênuos, felizes, mas excitados com a expectativa do curso de medicina que começava. Estávamos saindo doutores, também ingênuos, também alegres, e também excitados com a expectativa da vida pela frente.

Nesse tempo experimentei o espírito de coleguismo verdadeiro. Eu estava feliz com o fim de curso e com o começo de uma nova vida, mas como faria para viver sem a presença da amizade constante deles? Eles estavam indo embora, todos estávamos. Alguns ficariam na cidade, outros não. A tribo, enfi m, estava se espalhando pelo planeta. Agora era cada um por si.

Não sei onde está a maioria de meus amigos. Não sei se tiveram carreiras brilhantes, se casaram, quantas vidas salvaram. Talvez alguns já tenham partido definitivamente. Mas, por outro lado, sei, sim, onde eles estão. Em minha memória, e em um canto especial de meu coração. Que bom que eu tenho de quem lembrar, de quem sentir saudades e a quem agradecer por ter feito parte de minha história e por me ajudar a ser quem hoje sou, este conjunto de retalhos da vida que passou... e que segue.

fonte: http://vidasimples.abril.com.br/edicoes/096/pensando_bem/quando-alguem-vai-embora-595259.shtml